Trocar os pavios

15/12/2015 11:35

            Uma lamparina velha desgastada pelas mãos de quem a tocou certo tempo veio em minhas lembranças nessa noite de 26 nem sei de quanto. Era uma peça de latão corroída com um pavio quase novo, mas já aceso em uma ocasião espelhada nos meus reflexos amorosos de pessoa interiorana. Estava lá: quieta, feito barco abandonado em meio ao rio seco. Estava lá: solitária e tímida assim como ficam as moças ruborizadas ao receberem um elogio, mesmo que falso de um pretendente – passarinho desavisado- das ciladas do amor.

            A lamparina me sugeriu um tempo de graças, de luzes espectrais, de espelhos virgens, porque os velhos já deixaram suas marcas ferrúgicas no passado.

            Já fora testemunha dos grandes acontecimentos, das grandes invenções. Reuniu muitas famílias em volta da mesa de jantar, serviu de companhia para os casais de namorados nos terreiros das casas.

            Hoje, com essa lembrança um pouco ácida, me personifico e prosopopeias, hipérboles, antíteses e meio mundo de figuras de linguagens me assoberbam as mais profundas luminescências desse 26. Nesse espaço abissal, até paradoxal, porque chão e não água, encontro-me no oceano das mais intensas dúvidas. Vejo peixes  luminosos brincando de tica-esconde, conchas feridas virando pérolas, um caleidoscópio de minerais enfeitando o ambiente.

            Meu coração é esse mar contraditório entre a luz da lamparina e a vida abissal da minha alma inquieta. É um poço onde a água se perdeu no meio dos lençóis freáticos das emoções carregadas de desejos. É um índio cariri caçando outro coração, não tão menos diferente do menino Cupido das histórias gregas. É um pintassilgo pousado sobre um galho de castanhola em um fim de tarde sertanejo que olha, embevecido, para o Cruzeiro das nossas lendas infantis.

            Se há incoerência temporal ou temática nessa prosa, estou bem aquém dos imperativos acadêmicos. Quero ser apenas um coração que pulsa, vivo, atento, ansioso, excessivamente sentimental. Um coração que por ora acende a luz da lamparina e apaga-se nas águas de um oceano pessoal, intransferível e singular.

            Que venham as tempestades, os trovões, as enxurradas e que todas as lamparinas se apaguem para que possamos trocar os pavios e iniciarmos uma nova estação de luz.

 

Maria Maria Gomes, in Cruzeiros, 2015